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NUNO REBOCHO
Nuno Rebocho (1945, Queluz, Sintra, Portugal - 12 de Janeiro de 2020) foi um escritor e jornalista português.[1] Participou activamente na luta contra a Estado Novo de Salazar, chegando a ser preso durante cinco anos, por motivos políticos, na cadeia do Forte de Peniche.
QUATRO POETAS NUMA GARRAFA À DERIVA NO ATLÂNTICO: Fernando Grade, M. Parissy, Nuno Rebocho, Nuno Trinta de Sá. Cascais: Europress, 2004. 36 p. Ex. bibl. Antonio Miranda
Quatro estações deste mar
1.
este mar enxuto de paisagens & onde
memórias an coram e me
navegam na insular solidão de ir
a onde não
vão. (este mar) que bolino mesmo dentro
que mar é força: de andar.
este mar marreco (este) ancestral orgasmo
de transportar vontades até
aos continentes
da vida onde doem naufrágios
& de retomar percursos que sempre
seguem onde desejos seguem.
este discurso marítimo cujo mapa é
silhueta de proibições (que sempre ousarei
para lá do desconhecido) onde
nenhuma praia me apague
nenhum solo me acenda
na boca deste mar. na sua sede
me quero em barcar até
aos infinitos até nunca
haver dor nem golfo nem palavra
até que afague o fogo do cansaço
até onde rosnam as raízes do vento
até ao longe do até
até onde eu chegar
1
palavras leva-as o mar à voragem
dos cardumes - são conchas esvaziadas
sem incêndios e sem lume
palavras leva-os o vento como aos cirros
o desdém - trovejam mágoas por dentro
dos ouvidos de ninguém
palavras leva-as o mar que as rochas
do sofrimento resistem à água e ao vento
e teimam em naufragar
o mar é minha terra meu berço
de volúpias minha paz minha guerra
minha vinha sem drupas
quando te visto as calças oh mar
doem-me os dentes da solidão
(... umas vezes doem, outras não)
doem as varizes do silêncio como sonhos
roubados aos perigos e assustam-se
os barcos da dispersa inocência
— ah maré de renegar: condeno-te
a margem — alma se existe é infinito:
por isso gaivoto e grito
mais do que voz ou idade até que
o osso ralhe e o medo encalhe
na calma da fiaternidade
3
amigo: tem a beleza da alforreca que me esconde
a urticária mas invejo-lhe
a disponibilidade da deriva. leva-me a alma
no fluxo das correntes e eu grudado
à terra de mareante sem mar
na podre paz das gelatinas. se eu navegasse
por outras lavras amigo
correria para outros medos que me acolhessem
(a boca do tubarão por exemplo
ou os dentes da orca) e que o mar deste medo
não alcança.
a alforreca vejo-a a desafiar o sol
sem naufrágios possíveis
e é o único medo que esta praia oferece.
quando chego ao mar amigo à sua beira
sofro-lhe o limite de me faltarem medos
4.
surfamos as coisas com a prancha da palavra
enquanto o sentir ondeia
e então deitamo-nos de barriga sobre a tábua
que nos atira para a areia
molhamo-nos na espuma da ideias
com o sol de atalaia:
nadamos para longe
e sempre o mar nos devolve à praia.
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Págaina publicada em janeiro de 2021
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